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Pavilhão brasileiro na Feira Internacional do Livro em Frankfurt |
"É preciso ir além do mercado”
É positiva a polêmica em torno da Feira de Frankfurt, que nesta edição homenageou o Brasil. O interesse (e suspeição) começou antes da realização do evento. Várias tolices foram ditas. Uma delas: que os setenta escritores [da comitiva oficial da Fundação Biblioteca Nacional] não eram representativos. Representativos de quê, cara pálida? Como disse alguém na delegação, realmente não havia paraplégicos e anões. Deveria ter sido pautada pela ideia de cotas? Quanto ao fato de haver somente um negro e um índio, lembrei-me da anedota: um embaixador americano dizia que havia racismo, sim, no Brasil; a prova é que não havia negros no Itamaraty. Ao que um embaixador brasileiro respondeu: É verdade, mas, em compensação, também não tem branco. Como disse ao Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, que apresentaram como sendo o negro “oficial” da comitiva, eu, por exemplo, também sou negro. E não abro mão. Quem quiser se informar, procure as pesquisas do geneticista Sérgio Pena desmistificando a questão. Outra tolice foi sobre a “gastança”, como se aqueles artistas fossem
um bando de “marajás” a sugar o cofre da viúva. Quem assim pensou não
entende de licitações, de organização de eventos, e botou levianamente
em dúvida o caráter de muita gente. E os que alegaram que outros autores
poderiam ter sido convidados, apenas repetiram o que ocorre toda vez
que uma seleção é convocada. Cada um tem a sua na cabeça. Não dá para
colocar todo mundo em campo.
Vim como simples escritor ao evento. Há quase vinte anos, em 1994, o
Brasil foi pela primeira vez homenageado na Feira de Frankfurt. Eu era
presidente da Fundação Biblioteca Nacional, e, junto com a Câmara
Brasileira do Livro, assumimos os riscos de tal empreitada, arrastando
atrás de nós todo o governo. Como os ministros da cultura duravam pouco
em seus postos, e como passamos também por três presidentes, entendi que
tinha que atuar no governo à revelia do próprio governo. No serviço
público a roda é quadrada e a carruagem tem que andar. Hoje, há uma
estabilidade econômica e política. Naquele tempo, vivia-se uma incerteza
quântica, crônica e brasileira.
Abrindo a polêmica
Além daqueles equívocos iniciais a que aludi, outras questões mais relevantes surgiram nesta Feira de Frankfurt 2013. E elas afloraram já na cerimônia de abertura. Ao lado da fala técnica e conscienciosa dos alemães, três brasileiros mostraram (sem que tivessem combinado) três faces do Brasil. O discurso político e passional de Luiz Ruffato, expondo as mazelas do país; a fala moderada da presidente da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado; e a retórica antiga do vice-presidente Michel Temer. Ruffato foi aplaudido e Temer ouviu rumores de vaia. Quando o autor de Eles eram muitos cavalos deu as estatísticas sobre a miséria brasileira, Ziraldo se levantou pedindo para as pessoas não o aplaudirem. E se retirou.
Além daqueles equívocos iniciais a que aludi, outras questões mais relevantes surgiram nesta Feira de Frankfurt 2013. E elas afloraram já na cerimônia de abertura. Ao lado da fala técnica e conscienciosa dos alemães, três brasileiros mostraram (sem que tivessem combinado) três faces do Brasil. O discurso político e passional de Luiz Ruffato, expondo as mazelas do país; a fala moderada da presidente da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado; e a retórica antiga do vice-presidente Michel Temer. Ruffato foi aplaudido e Temer ouviu rumores de vaia. Quando o autor de Eles eram muitos cavalos deu as estatísticas sobre a miséria brasileira, Ziraldo se levantou pedindo para as pessoas não o aplaudirem. E se retirou.
A Feira começou, portanto, animada. Ziraldo depois seria
hospitalizado, Carlos Heitor Cony levou um tombo e voltou mais cedo para
casa e roubaram o celular da agente literária Lucia Riff. A internet do
Holiday Inn não funcionava e faltou água em alguns quartos. Fora isso,
os organizadores — alemães e brasileiros — saíram-se bem.
Ruffato se transformou na estrela do encontro, embora tenha dito em
entrevistas que fora ameaçado, até fisicamente, por conta de seu
discurso. Outros escritores não gostaram de sua fala: acharam-na
passional, política, inapropriada. Alegaram que sua função era
representativa e ele teria se superposto ao grupo, falando mais por si
do que pela variedade de escritores brasileiros.
O que alguns criticaram em Ruffato foi ele ter praticado a síndrome
do “narciso às avessas”, como foi definida por Nelson Rodrigues. Dizia o
sarcástico dramaturgo que o brasileiro gosta de cuspir na própria
imagem. Isto não é exclusividade nossa. Já afirmava Salomão: “quem ama
repreende”. Há formas diversas de amar, muitos brasis e muitos e
diversos escritores.
No entanto, muitos se acharam representados por ele. E sua fala teve
eco, sobretudo na imprensa alemã. Uma fala moderada não teria suscitado
interesse. E aqui cabe a pergunta: por que esse tipo de fala interessa
aos alemães e ao mercado do livro? Outra questão surge no subsolo da
polêmica: quem ama mais o Brasil? Será que Ziraldo o ama menos que
Ruffato? Ou melhor: quantas maneiras existem de amar o Brasil?
Nosso país não é uno, e quanto ao amor, sabemos todos, ama-se de
todas as maneiras, até de maneira inapropriada. Cada um acha que é o
melhor amante. No entanto…
Revendo os nomes que estavam na Feira, pensei que tipo de discurso
inaugural fariam, por exemplo, o historiador José Murilo de Carvalho ou a
psicanalista Maria Rita Kehl, da Comissão da Verdade. O que escritores
com uma visão ampla e menos pontual da realidade brasileira diriam? Cada
um pode imaginar o discurso que faria.
Estereótipos e best-sellers
Na Feira de 1994, houve uma mesa intitulada “O Brasil no imaginário europeu”. O assunto é inesgotável, e claro que tudo o que ocorreu em 2013 é um episódio novo dessa construção imaginária. O problema dos estereótipos é que eles são, de alguma forma, verdadeiros. Não podem ser simplesmente negados: samba, mulata, carnaval, favela e futebol são uma realidade. Fácil de exportar: já vi feiras internacionais de literatura onde a Espanha mostrava Dom Quixote e o Brasil exibia suas mulatas. E o resto do país? Onde fica Clarice Lispector em tudo isto? (Por sinal, uma estrela presente e silenciosa em vários seminários em Frankfurt). Nesta edição, o Brasil quis se afastar dos estereótipos. Procurou ser mais “moderno”. Há quem ache isto uma redução paulista.
Na Feira de 1994, houve uma mesa intitulada “O Brasil no imaginário europeu”. O assunto é inesgotável, e claro que tudo o que ocorreu em 2013 é um episódio novo dessa construção imaginária. O problema dos estereótipos é que eles são, de alguma forma, verdadeiros. Não podem ser simplesmente negados: samba, mulata, carnaval, favela e futebol são uma realidade. Fácil de exportar: já vi feiras internacionais de literatura onde a Espanha mostrava Dom Quixote e o Brasil exibia suas mulatas. E o resto do país? Onde fica Clarice Lispector em tudo isto? (Por sinal, uma estrela presente e silenciosa em vários seminários em Frankfurt). Nesta edição, o Brasil quis se afastar dos estereótipos. Procurou ser mais “moderno”. Há quem ache isto uma redução paulista.
Em 1994, muita gente se queixou da presença de Chico Buarque.
Alegavam que era uma concorrência desleal. Agora surgiu a polêmica em
torno de Paulo Coelho. Ele não deveria ter exigido um tratamento
especial. Imaginem como teria sido interessante se tivesse interagido,
por exemplo, com Ferréz num debate sobre periferia e marginalidade.
Ferréz, como Paulo Coelho, cada um na sua performance, pertence a outro
nicho da cultura. A best-seller Thalita Rebouças, em resposta ao autor
de O mago, disse que não foi convidada oficialmente, mas fez
questão de ir a Frankfurt sem qualquer exigência. Teria sido bom se
Paulo Coelho tivesse humildemente aparecido. Além do mais, o assunto era
mercado…
Detalhes
Esta Feira de Frankfurt teve características específicas que devem ser destacadas caso se queira entender o conjunto:
Esta Feira de Frankfurt teve características específicas que devem ser destacadas caso se queira entender o conjunto:
1. O tema dominante era mercado (alemão). Com isso, quem não tinha livro traduzido para o alemão ficou em segundo plano.
2. Tal Feira, embora tivesse representantes de vários gêneros, deu
ênfase a um tema dominante na mídia: a periferia e a marginalidade. Daí o
interesse em torno de Ferréz, oriundo das favelas paulistas (Capão
Redondo); de Paulo Lins e a favela carioca; e do escritor índio Daniel
Munduruku.
3. Foi uma Feira com ênfase paulistana. Várias editoras, revistas e jornais de influência nacional encontram-se em São Paulo.
4. Houve uma ênfase nos novos, naqueles que surgiram, digamos, dos
anos 1990 em diante. Mesmo sendo autores jovens, com poucos livros,
foram expostos e vendidos. Deram muitas entrevistas, conversaram com
agentes, fecharam contratos e até fizeram um périplo por vários países.
5. Havia também escritores “seniores”, alguns dos quais também
presentes na edição de 1994. Aquela, um momento de reconhecimento
internacional dos que se firmaram a partir nos anos 1970.
6. Os escritores jovens se beneficiam dos projetos de tradução
literária criados pela FBN na minha administração (1990-1996), e
ampliados por Galeno Amorim. Esse fomento à internacionalização começou
com encontros sistemáticos de agentes literários estrangeiros no Brasil e
outras iniciativas, quando o Departamento Nacional do Livro (FBN) era
dirigido por Márcio Souza.
7. Em outros termos, como disse Renato Lessa, atual presidente da
FBN, essa geração de novos escritores, com tanta liberdade de expressão,
é beneficiária também daqueles que foram torturados e exilados nos anos
de chumbo. A liberdade custa caro.
Analfabetismo e leitura
Na apresentação da Finlândia como próxima homenageada da Feira,
Paulo Lins entregava à escritora finlandesa Rosa Liksom o bastão.
Contraste cultural. Impressionou-me o fato de afirmarem que aquele é um
país 100% alfabetizado. Um músico brasileiro que mora na Finlândia me
disse o único problema é que não há problemas, pois governo resolve
todos os problemas dos cidadãos.
Certa vez, na livraria L’Ecume de Pages, em Paris, perguntei ao
livreiro por que não havia uma estante de autores brasileiros. Jorge
Amado estava entre os espanhóis. Ele disse que não havia produção
suficiente que justificasse tal estante. Imagino se agora que os
brasileiros estão sendo traduzidos estamos próximos disto.
Mas não somos um país de leitores. Neste ponto, a ansiedade e
indignação de Luiz Ruffato é legítima. Somos exilados dentro do próprio
Brasil. É muito difícil repetir a façanha de Jorge Amado e Érico
Veríssimo.
Na edição anterior do evento, participei de uma mesa redonda sobre
projetos de leitura. Havia entusiasmo e curiosidade em torno do Proler
da FBN. Ocupávamos uma liderança na América Latina, e tanto Alemanha
quanto Israel queriam desenvolver com o Brasil novas estratégias de
política de leitura. Agora, vinte anos depois, houve outra sessão sobre o
tema. Participei ao lado de José Castilho, que opera o Plano Nacional
do Livro e Leitura, e pontuei que o tema só virou preocupação nacional a
partir do Proler. Antes, nunca se havia pensado numa política nacional
de leitura. Pensava-se em editoras, em bibliotecas e em alfabetização — e
a palavra leitura estava embutida, era uma abstração. Pois é preciso dar visibilidade a ela.
Há pouco, dois importantes editores brasileiros disseram que o Brasil
editava livros demais, que as livrarias não sabiam o que fazer com
tantos títulos. Equívoco. O Brasil não produz livros demais, produz
leitores de menos.
A Feira de Frankfurt é um louvável esforço em torno do mercado do
livro. Algum país, talvez a Finlândia, talvez o Brasil, poderia fazer
uma feira mundial da Leitura. É preciso ir além do mercado. A literatura
sempre fez isto.
