Cyro de Mattos
Sigo pela cidade a pé.
Acompanha-me um menino outrora afoito, magro,
que fazia da vida uma expressão da liberdade. “Primeiro a obrigação,
depois a diversão”, a mãe dizia, ele cumpria a regra sem pestanejar. Era um dos primeiros da classe. Tinha gosto de fazer os deveres escolares e
de estudar as lições na semana. Depois disso ia se encontrar com os amigos em
algum local antes combinado para
vasculhar os cantos da cidade, em busca da melhor brincadeira que os dias
pudessem oferecer. Roubar fruta madura nos quintais era uma deliciosa aventura.
Esse menino está vendo agora
o quanto mudou sua cidade. Já não existe mais a pequena casa onde morava com os
pais e o irmão. Ficava na rua estreita por onde não passava carro, perto da
delegacia. O melhor mirante da cidade
era o alto do telhado, de onde se via a vida acontecer no céu e na rua, por
onde passavam personagens e fatos importantes que iriam marcar a sua vida para sempre.
Outro é o cenário da rua do comércio.
Onde antes era lama no inverno e poeira no verão agora é uma avenida bem
comprida, asfaltada. A sinaleira acende os sinais vermelho e verde, controlando
o movimento intenso dos carros e dos pedestres, que atravessam a avenida pela
faixa, de um lado para o outro. Guardas
fiscalizam os motoristas, multam aqueles que estacionam os carros em locais
proibidos, rompem os sinais de trânsito de maneira imprudente. Lojas, bancos,
lanchonetes. Meninos de rua, guardadores de carro, mendigos. Gente no passeio
indo e vindo.
O menino quer saber por onde
andam as tropas de burros, que desciam carregadas de cacau seco ensacado, na
direção dos armazéns de portas largas. O desfile dos animais deixava alegres os
meninos, que paravam para ver os burros andando com os passos cadenciados.
Chegavam puxados pela madrinha, a mula da frente, enfeitada de guizos no
peitoral, o chocalho no pescoço. Naquele desfile de cascos cadenciados, som de
guizo e chocalho, a tropa dos animais inaugurava o dia com um canto metálico, que
se propagava festivo na manhã luminosa.
O menino pergunta por que as
tropas perderam-se na estrada, depois que dobraram a curva e nunca mais
retornaram. Mudo, fico sem saber como responder à pergunta, convencido de minha
impossibilidade para saber do tempo por que razão tudo tem que acontecer assim
no seu curso invariável. Ontem seres e coisas ali estavam nítidos, definidos,
eram vistos e alcançados. De repente, sem que fosse percebida a mudança, fugiam
para outra paisagem, perdiam-se por trilhas e atalhos, encobertos para sempre
na estrada desconhecida. Obedeciam assim a um ritual de indiferença desde não
sei quando, sem que pudessem retornar das terras do sem fim.
Insiste, esse menino de
olhos espertos, em ver o campinho na
margem do rio onde jogava futebol com os amigos. Ele me diz que quando a bola
rolava pelo barranco ia cair no rio. O jogo ficava interrompido até que um dos
meninos fosse procurar a bola lá embaixo, às vezes era encontrada boiando nas
águas. O jogo então recomeçava nos lances aguerridos. No lugar do campinho do futebol encontramos o
cais, que foi construído em cada margem do rio para evitar com isso que as
águas derrubassem nas cheias as casas ribeirinhas, causando estragos e até
mortes. Onde estão as pedras pretas que
eram cobertas pelas roupas coloridas quando as lavadeiras estendiam para secar ao
sol. Espetáculo vistoso de cores que os olhos nunca cansavam de ver. As
lavadeiras, os areeiros, os pescadores, os canoeiros? As águas do rio ficaram poluídas, não existe
mais peixe, ninguém se atreve a tomar banho no rio, tomado de baronesas. E o
Campo da Desportiva, lugar festivo aos domingos, com seus jogadores habilidosos
no trato com a bola? A seleção amadora
da cidade foi oito vezes campeã do Intermunicipal.
O menino está com os olhos úmidos e
vermelhos. Desiste de continuar no passeio com o homem calvo, de rosto
tristonho, que também busca um tempo que se foi com suas vozes, cores, brincadeiras.
No jardim da Beira-Rio havia um coreto, fontes luminosas, árvores que abrigavam
os namorados, conversando sentados no banco. Flores, muitas flores. Para não ficar
mais triste com o que vê agora na paisagem com outro visual, revestido de
ausências íntimas, o menino afasta-se desse homem idoso, que tem o rosto
coberto de uma pequena nuvem cor de sombra.