Ricardo Cruz*
Li recentemente um livro de Ismail Kadaré: Dossiê
H. Nos confins da Albânia, início do século XX, dois estudiosos para lá se
dirigem com o propósito de pesquisar os cânticos épicos dos trovadores, em
busca das raízes ou chaves para decifração de Homero. Tal presença causa
impacto aos habitantes, que tomam os dois pesquisadores como espiões a serviço
de alguma potência estrangeira, cuja missão seria a de perturbar-lhes a vida,
expondo as raízes, não as de Homero, mas dos conflitos e tragédias que lhes
atormentam a existência desde sempre. Entre outras preciosidades os dois
“espiões” ouvem a fala de um poeta albanês: “Na cólera entre nós nascemos”. E
logo vem a descoberta: cólera: mênin,
a mesma palavra encontrada no início da Ilíada...
Li Os Ventos Gemedores sem pressa, aos poucos, às
vezes voltando ao capítulo anterior, deslumbrado com a poética de cada frase,
em como você conseguiu criar um romance/poesia inspirando-se nos brutos, nos
brabos. Nos tempos selvagens que ainda existem. Esse novo território grapiúna
de sua invenção – Japará –, a cada página me fez relembrar o território de
guerras e tragédias grapiúnas, território também de Kadaré. Porque é mesmo a
partir do pequeno território de nossas invenções que levamos ao mundo em forma
lírica, ou em prosa, as tragédias ou conflitos que testemunhamos, às vezes
compartilhamos. Revisitei páginas de Os Brabos, buscando as raízes para Os
Ventos Gemedores, e tive uma certeza, você o engrandeceu com a extensão de sua
prosa, de sua poética.
Em Os Ventos Gemedores, logo no prólogo você bem
que nos dá aviso do que se trata: romance de compromisso, com sabor (e saber)
de poesia, escrito com a força de quem sabe tirar mel das pedras, a nos lembrar
da trágica e brutal existência humana nas brenhas selvagens dos cacauais de
antanho. De antanho? Nem tanto, vivemos outros tempos. Há outras formas de
violência, da exploração do homem pelo homem.
E de contá-las. O tirano Vulcano Brás, a submissa Edvina, seus filhos
Olívio e Olindo, Vaqueiro Genaro, Almira, Aparício Pança-Farta, são personagens
marcantes que nos introduz no mundo hostil, por vezes pueril e sem dúvida
encantatório. Personagens esses a se desesperarem ante a infâmia, cansados de
desavenças, exploração e sofrimento, tendo como cenário a natureza exuberante e
dadivosa do Sul Baiano. Fartos, decidem-se e declaram guerra ao clã dos Braz. O
escritor Cyro de Mattos, na melhor tradição dos contadores de histórias, indo
além, neste Os Ventos Gemedores, nos dá notícia dessa guerra, também exerce,
como os rapsodos dos tempos do Amor Cortês, e no melhor de sua criação,
entremeia a narrativa com o som de sua poesia, que no final comparece ao modo
do coro grego, numa ciranda, como Homero:
Que faça sol ou faça chuva/
Viva a vida boa e justa /
Tendo sempre a seu favor /
Tanto o amor como a flor pura.
Que faça sol ou faça chuva /
Viva a vida boa e justa /
Inocente na sua dor /
Mas sobrada de valor.
· *Ricardo Cruz é médico psiquiatra. Contista e romancista.