O MELHOR RIO DO MUNDO
Cyro
de Mattos
Meu novo amigo tinha mudado para a nossa rua há alguns
dias. Usava óculos de grau e era metido a saber das coisas. Ele me
revelou que era o primeiro da classe no colégio onde estudara antes de
mudar de cidade. Mostrou-se logo com aqueles ares compenetrados entre os
novos companheiros, querendo passar por um grande conhecedor dos assuntos
ligados à Geografia, mas tudo que ele falava para ressaltar a importância dos
rios na história dos povos eu já sabia. Nada do que falava sobre os rios
impressionava-me porque a matéria que mais gostava na escola era
Geografia..
Bastava ele se encontrar comigo para puxar conversa
sobre os rios. Dizia numa voz pedante que os homens sempre tiveram
atração pelas águas, acrescentando que as grandes civilizações nasceram e se
desenvolveram às margens de um rio. Lembrava que o Amazonas com o
seu mundo de água era um rio-mar. O Nilo era uma dádiva porque deixava
as terras ribeirinhas fertilizadas depois de cada cheia, tornando-as as
melhores do Egito para o plantio das lavouras. O milagre do Nilo beneficiava os
agricultores e milhares de pessoas, observava prazerosamente. Eu ficava calado,
ouvindo-o sem contestar o que ele dizia e procurava mudar de assunto.
Não se dava por vencido quando percebia que eu não me
importava nem um pouco com o que ele dizia sobre os rios. Voltava de novo ao
assunto, lembrando agora que grandes cidades brasileiras ficavam às margens de
rios famosos, como São Paulo e o Tietê, Porto Alegre e o Guaíba, Manaus e o
Amazonas, Recife e o Capibaribe. Aqueles rios, sim, mereciam ser
admirados e não aquele riozinho que passava em minha cidade, que mal se
prestava a ser navegado por canoa e que virava um desses
riachos pequenos correndo entre as pedras quando o verão era seco e
prolongado.
O rio que cortava minha cidade em duas bandas,
o velho Cachoeira, como algumas das pessoas mais velhas gostavam de
chamá-lo, era para mim o maior e o melhor do mundo. Meu novo amigo não me
trouxesse o Amazonas com o seu mundo de água nem o Nilo com suas dádivas. Um
rio que passava como um bicho sem tamanho na enchente, levando nas costas
tronco de árvore, bicho morto, soprando seus ventos alegres no meu peito e dos
amigos quando era tempo de estiagem, somente esse me bastava nas
manhãs e tardes ensolaradas.
Aprendi a nadar nas suas águas mansas, mergulhar no
raso e no fundo, saltar dos barrancos altos como se esses fossem
trampolins improvisados. Para não falar das pescarias, de anzol ou de rede,
quando sempre pegava muito peixe.
Eu era quem melhor saltava dos barrancos do meu rio.
Dava cada salto mortal que no mesmo instante arrancava aplausos dos
amigos que estavam assistindo aos que tinham coragem de pular do barranco
para o poço da Pedra do Gelo. Tanto os que tinham medo de saltar do barranco
como os que saltavam, afoitos, não entendiam como meu corpo depois do
salto penetrava na água sem quase fazer barulho.
Só não via quem fosse cego que as lavadeiras, os areeiros, os aguadeiros e os
pescadores tiravam das águas do Cachoeira o sustento de suas famílias.
Meu rio dava um espetáculo bonito de se ver quando as lavadeiras
estendiam as roupas sobre as pedras pretas, colorindo-as. Depois da cheia, os
areeiros escavavam o leito generoso do velho Cachoeira, quando então retiravam
com a pá a areia dos trechos mais rasos. Os jumentos levavam para as
construções, que iam surgindo em vários pontos da cidade, as cargas de areia
nas latas. Os pescadores traziam as canoas cheias de peixe graúdo, indo
vendê-lo nas pensões e nas casas das famílias, todos os dias.
Quanto ao meu rio só poder ser navegável por canoa, comecei
a me preocupar sobre tal situação de uns dias para cá. Realmente
eram aquelas pedras grandes, espalhadas em muitos trechos, que impediam que as
águas de meu rio fossem navegadas por embarcações maiores, como saveiro,
lancha, barco e até navio. Nesse ponto achava que meu amigo mais novo tinha até
razão quando apontava isso como uma das coisas desagradáveis do meu rio.
Infelizmente tinha que concordar com ele.
Fui ficando cada vez mais preocupado com aquela situação
que me deixava abatido quando ia admirar da balaustrada do jardim a
passagem do meu rio. Não me conformava em saber, por exemplo,
que nunca ia viajar numa embarcação grande rumo ao mar de Ilhéus,
em razão daquelas inúmeras pedras pretas que brotavam do leito de meu rio. Mas
como encontrar uma maneira pela qual o Cachoeira se tornasse navegável
por embarcações maiores do que uma canoa?
Depois de muito pensar sobre o assunto, tive
uma idéia que me pareceu chegar em boa hora. Para retirar tantas pedras do rio
Cachoeira, fazendo com que ele se tornasse navegável por qualquer tipo de
embarcação grande, só usando daquelas bombas que estremeciam a terra
quando explodiam nas pedreiras. Claro que isso tinha que ser feito com o maior
cuidado para que fosse evitada a morte das pessoas que viviam do rio e
também dos peixes. Mas quem seria capaz de executar tamanha proeza?
Aí me lembrei que na cidade apenas uma pessoa podia
realizar essa grande proeza. Só mesmo o Prefeito, mais ninguém. Mas logo
encontrei um obstáculo impedindo que levasse minha idéia adiante. Era que
o prefeito atual pertencia ao partido da oposição e, por isso mesmo, não
ia atender a um pedido importante como esse feito por um menino filho
do secretário do partido da situação.
Para que a minha idéia desse certo e, finalmente, o rio
Cachoeira se tornasse navegável por embarcações grandes, era preciso primeiro
que o prefeito fosse do partido de meu pai. Amanheci pensando em
resolver o problema, valendo-me de outra idéia, que me pareceu tão luminosa
quanto à primeira. As eleições para prefeito naquele ano iam ocorrer dali a um
mês, e todos na cidade sabiam que geralmente saía vencedor aquele candidato que
fizesse as promessas maiores ao povo.
Fui então falar com meu pai, que havia acabado de ler o
jornal e já ia ligar o rádio para ouvir as notícias do Brasil e do mundo,
transmitidas pelo Repórter Esso, por volta das 7 horas da noite.
Disse ao meu pai:
- Já sei como tio Alfredo pode ganhar as eleições para prefeito.
Com a cara de espanto, meu pai fez que não entendeu nada do que eu falei.
- Como assim?.
- É só ele fazer uma promessa que deixe todo mundo pasmado como
nunca acontecera.
------------------------------
ITABUNA, MINHA CIDADE
Margarida Fael
Todas as cidades têm suas histórias. Algumas
mais belas, plenas de lutas, de atos de coragem; outras carregam sofrimentos e
vivem por aí, a pedir perdão. Muitas são cheias de curiosidades, de
"causos " inesquecíveis... Outras carregam tudo isso junto em sua
bagagem. Itabuna, todos conhecemos, tem uma história curiosa. A nossa Taboca,
estão aí os nossos cronistas e historiadores, tem muito o que contar. Mas ela
nasceu bonita: nasceu da vontade de um homem, retirante que era, que para cá
veio e levantou sua casa, plantou sua roça, agregou sua família. Nasceu bonita,
sim! Muitas dores e tristezas, trapaças e traições aqui se fizeram depois e
mancharam seu caminhar. Mas este ainda é, até hoje, o caminhar do homem sobre a
terra. Aqui ou acolá, ontem, como hoje.
Porém, há uma Itabuna guardada em mim, guardada
em muitos e muitos de nós que aqui vivemos e labutamos. Há uma Itabuna doce e
querida: aquela de um rio belo e majestoso,
onde os acaris alimentavam os que nada tinham;
aquele rio que, embora algumas vezes se levantasse como um monstro, lambendo
furiosamente tudo a sua volta, era oferta de margens brancas de areia, era
lajedo limpo e oferecido às lavadeiras que ali cantavam seus cantos de dor, ou
suas modinhas de alegria...Itabuna eram os boninais floridos, enfeitando as
ruas, mesmo aquelas escuras e mal calçadas; era a velha Matriz,badalando seu
chamado para a Ave Maria de todo dia.Itabuna era o Colégio da Divina
Providência, diplomando as primeira normalistas desta terra. Era uma
saudosa Ação Fraternal de Itabuna, com suas meninas de azul e branco e seus
corações plantando sonhos e esperanças... Tanta, tanta coisa era a nossa
Itabuna! Belos jardins floridos,os Guardas Municipais nem precisavam sair
de suas posições de sentinelas : as flores ficavam ali, respeitadas em sua
beleza... Tanta, tanta coisa ela foi!
E hoje? Cresceu, avolumou-se, esticou-se
para todos os lados, subiu morros e encostas.Espichou-se a mais não
poder... Caminhou, caminhou... Esqueceu-se do rio, esqueceu-se das flores;
boninais, ninguém mais os conhece. Construiu arranha-céus, e o rio? O
rio, esquecido se tornou. É verdade que Itabuna construiu um bonito
shopping, com nome de madeira rica que nem mais existe. Em suas ruas quase já
não espaço para caminhadas lentas e para olhar o céu. Todos os passos se
apertam , pois os carros estão a buscar espaço. Itabuna se modernizou! Para
isso, teve que abdicar de sua alma, do seu caráter, de seus sonhos, de sua
beleza...
E ficamos todos, seus filhos presentes e
ausentes, com uma Itabuna apenas gravada na memória. E desistimos? E as nossas
mãos, estão duras e inertes, incapazes do movimento? E as nossas vozes, estão
mudas, perderam-se num país de desencantos?
Penso, no entanto, que sempre há e haverá,
desde que estendamos nossos braços e soltemos nossa voz, uma Itabuna que
espera, que está à espreita, imaginando-se mais bela e ordeira; esperando que
desembrulhemos sua alma , escondida por tanto na inércia, escondida nos
interesses e intenções às vezes obscuras, em tantos braços que se cruzaram.
Sim. Itabuna aqui está à espreita. Olhos
abertos de desejo e sonhos nunca esquecidos! E espera nossa voz!
Margarida Cordeiro Fahel
Professora de Literatura Brasileira da UESC (
Aposentada)
Autora do romance "Nas Dobras do
Tempo", Editora Mondrongo.
-------------------------
PARA SE CONHECER UMA CIADADE...
Por Lurdes Bertol Rocha
Olhar para a cidade pode dar um prazer especial, por mais comum que possa parecer o panorama.
Kevin Lynch
Para se conhecer uma cidade é mister conhecer sua alma. E o que é a alma de uma cidade? Oliveira diz que "a alma de uma cidade é tudo que se passa dentro dela" (Jornal Agora, 28 de julho de 1999, p. 2). Para ele, fazem parte da alma da cidade os bares, os loucos, os poetas, os boêmios, as crianças, os pássaros, o povo, as ruas, as praças, os bairros. Enfim, a alma da cidade tem cheiro de povo, pois uma cidade não existe sem o povo e para o povo. E, se a cidade tem gente, tem alma. E a alma é viva, causa movimento, agitação. Se tem alma, tem vida. Se tem vida, tem alma. E isto se faz visível através do cotidiano da cidade, através do mundo vivido e experienciado por seus habitantes que sabem disso, sentem isso.
A cidade se constitui no lugar de cada um. Se é o lugar, significa afeto, gostar de estar, preservar, cuidar (topofilia). O centro da cidade é a sala de visitas desse lugar. E a sala de visitas é, ou pelo menos deveria ser, o lugar mais bonito da casa. Apesar de os moradores de Itabuna sentirem amor por sua cidade, sua sala de visitas precisa urgentemente ser recuperada, serem revitalizados seus espaços/lugares/signos: monumentos, praças, ruas. Reconstruir. Senão, como fazer a leitura da história/geografia, da memória da cidade, se os registros que lhe deveriam dar acesso encontram-se maltratados pelo descaso/desconhecimento de seus moradores? Transformar-se-á, por certo, numa cidade sem alma. Uma cidade sem alma é uma cidade fantasma. Urge, portanto, reavivar a alma da cidade de Itabuna. Isto é tarefa do poder público, do poder privado, da comunidade; enfim, de todos. É mister que cada um cuide de sua casa, de sua rua, de seu pedaço, de seu lugar.
Pode-se afirmar que a o amor ao lugar faz parte da vida das pessoas, vivam elas na cidade ou não. Quem é que não sente a magia de uma praça, de algumas ruas históricas, paços públicos, monumentos? Desde o farfalhar das folhas na praça, o barulho de água corrente numa fonte, o canto de pássaros, as festejos das tradições folclóricas e históricas, os sons das crianças brincando, demarcam sítios arqueológicos vivos na memória de quem retorna a seu lugar depois de se ausentar por algum tempo.
A cidade parece ser, em si mesma, a memória viva de um povo, de um clã, de uma etnia, determinada por seus feitos, num certo período do tempo e do espaço. Pode-se dizer, ainda, que a aura de uma cidade é o reflexo de como vivem seus cidadãos, que fala numa linguagem sutil, não verbal, das subjetividades expressas em forma de ruas, praças, museus, jardins, bosques, pontes.
Cada habitante de Itabuna é responsável pelo bem estar da alma de sua cidade. Como? Cuidando de sua rua, de sua calçada, dos monumentos, das praças, dos espaços públicos em geral. Neste seu aniversário de 106 anos de emancipação política, que ela receba, como presente de seus filhos naturais ou adotivos, a promessa de que farão tudo para que ela esteja sempre bem cuidada, florida, alegre, receptiva e amada.
(Fonte: Baseado no livro “O centro da cidade de Itabuna: trajetória, signos e significados”. Lurdes Bertol Rocha).
---------------------
ITABUNA
Ceres Marylise Rebouças
Os meus olhos são os mesmos
Desse teu rio rasgando
Avenidas de omissão
E desprezo dos humanos.
São os mesmos de tuas matas
Hoje, escuras paisagens
Padecendo na inclemência
De uma longa estiagem.
São os mesmos dos teus frutos,
Frutos do ouro, outrora
Destruídos pelos NÓS
Que lembram insana história.
São nossas tuas feridas
Provocadas por carências,
Abandonos, retrocessos,
De quem jurou tuas crenças.
Mas o teu povo acredita
E na esperança persiste
Para que brilhes de novo
Com a força que em ti resiste.
***
----------------------------------
Documentário ITABUNA 100 ANOS- A História Contada
Direção: Raquel Rocha
--------------------
INVENÇÃO
POÉTICA: UM ESPAÇO DE LIBERDADE?
Literatura
grapiúna – uma reflexão
Maria de Lourdes Netto Simões*
Com
o propósito de provocação, começo perguntando: Escrita literária será espaço de
liberdade? Que liberdade tem um artista ao
inventar a sua obra? Deve submeter-se a regras? Deve ousar?
Seguir escolas, grupos? Que
escolas, quais grupos? Até onde vai a
sua liberdade? Há limites?
Como
sabemos, uma das pretensões mais firmes
desses tempos é a rejeição a quaisquer
critérios canônicos de valor. Não existe
texto fechado, desde quando o espaço
concedido ao leitor dá-lhe a liberdade de re-significações. Não existe última
versão autoral, se cada versão consiste em novo momento enunciativo. Com os
recursos da mídia e a velocidade dos tempos, a literatura é representação, mas
também se faz em apresentação, acontecendo...
Falar
sobre espaço de liberdade da escrita literária exige refletir no que pensam os
ficcionistas e poetas sobre o ato da escrita.
Exige, também, que consideremos a mudança do pensar o fazer poético de
tempos em tempos; desde a ideia do poeta como ser inacessível, que tem o sopro divino; ao poeta
de inspiração e transpiração; àquele que
não cria mas produz, dizendo de outra forma; ao da auto-reflexividade poética,
etc, etc... Essas várias formas de ver a liberdade autoral
exigem uma reflexão sobre a gênese literária. Cada obra cria o seu
próprio gênero, diz Todorov (1978).
Acreditamos
que as vivências do autor são fundamentais para o seu processo de
criação/produção poética? Consideramos
que o imaginário é alimentado do vivido e do vivível? Consideramos que as
versões de um mesmo texto, em verdade, são processos enunciativos diversos?
Nesse caso, a última vontade autoral vale tanto quanto a primeira? Essas são algumas questões que levanto quanto
observo o processo de alguns escritores.
O quê é mesmo matéria ficcional ou poética? O quê houve
e o quê poderia ter havido? O vivido e o vivível fazem o imaginário que se concretiza, pela palavra, em literatura? Tudo isso implica em espaço de liberdade?
Que
dizer sobre o retorno do referente (Peter
Brooks, 1983)? Como olhar o processo paródico (intertextual e irônico) senão
entendendo que não mais cabe uma postura
inocente quanto a linguagens e tipos de
discursos. Concordamos com a idéia de
que tudo já foi dito, resta-nos dizer de outra forma?
Que
busca o leitor contemporâneo ao ler um livro ficcional? Italo Calvino (1989)
preconizou, nas suas Seis Propostas,
o tipo de linguagem que interessaria ao leitor deste milênio: Leveza, rapidez, visibilidade,
multiplicidade, exatidão, e consistência. A liberdade do autor considerará isso?
Todos
esses questionamentos implicam em
reflexão sobre a liberdade de invenção
poética, que aqui quero somente suscitar, sem respostas definitivas. Não
caberia, claro!
Então quem é o autor? Qual a sua matéria prima?
Até
bem pouco tempo falava-se na morte do autor.
Hoje, o autor recupera o seu espaço, em múltiplos questionamentos.
Quando
do seu doutoramento honoris causa na
UFMG, José Saramago dizia da sua
idéia entre narrador e autor, negando o
primeiro e afirmando o segundo. No seu
discurso, chega a afirmar que "provavelmente o leitor não lê o romance, lê
o romancista" (1999, 25). Retoma a
declaração de Flaubert: “Madame Bovary sou eu”, e diz ter Flaubert esquecido de
também dizer que ele era o marido e os amantes de Emma Bovary. Quer com isso
afirmar que um autor é os seus personagens. Assim ele, Saramago, é
Blimunda, e é Baltasar, em Memorial do Convento. E em
Evangelho Segundo Jesus Cristo, diz ele, "não sou apenas Jesus ou Maria
Madalena, ou José e Maria, porque sou também Deus e o Diabo que lá
estão..." (1999, 25).
No
discurso de posse da Academia Brasileira de Letras, Adonias Filho declara a sua
inspiração vinda da terra, das suas memórias. Declara que, voltando no tempo
vivido, é o menino quem em verdade escreve: a fábula regional, as vozes, as
figuras. Testemunho. Da mesma forma, Jorge
Amado recorre à memória da sua infância nas terras do cacau para escrever a sua
saga. Convicto da importância da vivência nos seus processos ficcionais, esses
escritores das terras do cacau, no entanto,
tomam o seu espaço de escrita por perspectivas de liberdade diversas. Enquanto
o primeiro faz a escrita por artesanato da palavra, o outro é um contador de
histórias. Ambos contam a saga do Cacau
por espaços de liberdades diversos. Assim também quando Hélio Pólvora ou Cyro
de Mattos (e tantos outros) narram histórias do cacau, certamente eles trazem
as suas memórias ouvidas e vividas. Ainda, a africanidade temática da ficção de Ruy Póvoas traz a
memória das suas origens, vivências em “fingimento” da vida. Margarida Fahel,
em Nas Dobras do Tempo, chega mesmo a
se questionar como lhe chegam os fatos? E Ritinha Dantas que afirma a sua “alma
grapiúna”, quando conta/pede Bença Vó!
Esses são alguns exemplos deste chão grapiúna, através dos quais busco pensar a
liberdade autoral e interpretar a apropriação discursiva dos personagens
criados.
Cada
personagem tem um pouco do autor? mas
nenhum é ele mesmo!! Sim, é bem como quando Fernando Pessoa diz: “o poeta é um fingidor, finge tão completamente / que chega a fingir
que é dor/ a dor que deveras sente". Se observarmos, veremos que
não há contradição em relação ao
que afirma Saramago: "Do fingimento de verdade e de verdades de fingimento
se fazem, pois, as histórias" (id: 24). Mas José Saramago acrescenta que,
ao ler um livro, mais do que a história apresentada, o leitor vai em
busca "da pessoa invisível, mas onipresente, do autor". Por isso, também, a sua identificação com
todos os personagens que cria. São todos: ele. De resto, "a literatura (como toda obra
de arte) é assim a "expressão mais ambiciosa de uma parcela
identificada da humanidade, isto é, o
seu autor"
Além da sua liberdade de escolha, o quê leva um escritor a escrever sobre um tema?
Desde
sempre, a pergunta se impôs para mim. Quando
escrevia sobre a antologia Itabuna, Chão
de minhas Raízes (1996), organizada por Cyro de Mattos, perguntei-me então:
que motivos suscitaram, nos anos 90, a retomada do tema do cacau na literatura
grapiúna? - fazer com que os mais jovens conhecessem a história? E o quê levou o organizador a se ocupar de uma
cidade, no caso Itabuna? Homenagem? Relembrança de uma época? Naquele então, afirmei (e hoje reafirmo) que o
cantar uma “aldeia” é sempre o contar a alma de um povo: seus anseios, seus
sofrimentos suas alegrias seu cotidiano, sua história; vivências retidas na
memória, lembranças ou perspectivas de um tempo, redimensionadas pelo imaginário
e tornadas literatura.
No
caso dos textos reunidos na referida antologia (e pela temática, cito essa em
meio a tantas outras), os textos vão desde o arraial de Tabocas até a sua
condição de cidade. Retomam os tempos de conquistas das terras, passando pelo
apogeu do cacau, até os tempos mais difíceis. Tematizam paisagens, espaços,
fatos e pessoas. Percorrem a história de Itabuna, da época das velhas marinetes
e da estrada de ferro. Falam de um “burgo de penetração, pois que nasceu como
centro de estradas” (Adonias Filho). Abordam tempos da prosperidade e do
poderio do coronel do cacau e dos empresários habitantes do bairro Goes Calmon.
Chegam até aos tempos de crise. Assim, marcas e características da cidade e do
povo (referentes do real) são identificados nos espaços revisitados, nos
personagens transmudados pela ficção.
E
o questionamento persiste:
Como ocorre a liberdade autoral na
escolha dessa ou daquela expressão, frase, versão? Podemos, nós leitores,
precisar a intenção autoral? E quando se
trata de manuscritos literários: qual a intenção autoral se temos duas ou mais
versões de um mesmo texto? por que a
reescrita de um mesmo texto? a busca da
perfeição poética, a procura da melhor palavra?
Reporto-me
à concepção de escrita de Valdelice Pinheiro, poetisa itabunense, falecida
(1993), que deixou inéditos nos quais trabalhei e resultaram na publicação do
livro Expressão Poética de Valdelice
Pinheiro (2002). Eminentemente filosófica desde o seu processo de
enunciação até à concretude da sua formulação, muitas vezes antecede ao
processo de produção uma reflexão filosófica.
Nesse sentido, textos filosóficos são verdadeiras matrizes de
poemas ou de prosas poéticas.
A
própria poetisa diz sobre a sua poesia: “é simples, toda nascida de uma
linguagem cotidiana, sem rebuscos. Por isso o povo gosta dela, embora às vezes
o sentido de alguns poemas seja até metafísico. Acho que se se entende a
palavra, sente-se o conteúdo do poema”.
Super realistas, para ela, artistas são aqueles que vêem “a explosão de
uma semente e ouvem uma flor se abrir”. “o poeta, como o filósofo, é esse
micróbio que conhece as entranhas”. "Só pode haver criação sobre uma
existência anterior", diz Valdelice.
O
texto "Retomada" (SIMÕES, 2002, p. 136) é um exercício de auto-reflexão
sobre o processo criador. Valdelice ocupa-se dele
simultaneamente ao seu fazer poético.
Esses escritos de auto-interpretação são
explicativos do seu processo poético e podem ser tomados como uma
proposta de teoria da poesia. Para V.P., escrever é libertar-se. O texto nasce do silêncio, diz a poetisa, de
uma voz interior impulsionadora. Essa Voz (com maiúscula), diz ela, não “a
simples voz, um som emitido pela competência do aparelho fonador, mas a Voz, a
VOZ, aquilo que sem dúvida não me antecipa mas é certamente o que me diz. A
Voz... Esse silêncio que chega aflito, precisando do grito, tem que inventar o
som...”. O processo de surgimento do
poema passa pela fase do que chama de “mundo das idéias”, fase essa expressada
através de desenhos. São retas, curvas,
espirais que dão surgimento a inesperadas formas e em seguida ao poema. Nesse instante, “a voz tira a lógica, o juízo, desregula o
comportamento do vocabulário”. Assim
nasce o poema: Se a carambola/ tivesse dedos/ tocaria Mozart,/ certamente.
Poesia
e desenhos (rabiscos, como ela prefere chamar) expressam a sua forma de
comunicar, compondo um processo artístico que ultrapassa a palavra para uma
comunicabilidade visual, que certamente dará
mais leveza, rapidez e visibilidade ao texto.
Valdelice
é um exemplo de que, nesses tempos, a liberdade da escrita não se limita à
palavra. A liberdade vai além, passando pelo visual, pelo estrutural; enfim, a
liberdade abrange toda uma concepção artística comunicadora.
Sem uma resposta definitiva
às perguntas aqui lançadas, no entanto, os exemplos dizem muito. É ler e reler essa
rica literatura grapiúna para outras
questões se colocarem. E,
chegando aos mais novos escritores, o leitor vai identificar outras questões
mais... que a arte não se limita a espaço e tempo...
Então, qual a temática
pulsante destes novos tempos? Quais caminhos de escrita? Essa pergunta fica em
aberto para próximas reflexões.
Itabuna, julho
de 2016.
Pós-Doc em Estudos
Portugueses, pela Universidade de Lisboa. Comendadora da Ordem do Ensino –
Portugal. Professora Titular de
Literatura Portuguesa/ UESC, aposentada.
--------------------------------------------
EU, MENINA, ITABUNA
Sione Maria Porto de Oliveira
Nos idos anos
sessenta,
Desabrochando como
rosa perfumada,
Descia a Benjamin
Constant
Em direção a Praça
Adami,
Em algazarra com
minhas amigas delicadas.
Sorridentes,
Percorríamos o caminho para Praça Olinto Leone
Onde ficava o antigo jardim dos namorados,
Do tradicional Itabuna Club.
Sorvo as lembranças como hoje,
Daquelas noites enluaradas
Onde os belos rapazolas perfumados
Impressionavam tragando cigarro Minister
Que saudade!
Oh Itabuna feliz de outrora!
Sonolenta e sem violência
Tranquilamente nos transmitia,
Seu ar de paz e plenitude se sua flora.
Pujava a lavoura do cacau,
Que cada vez mais lúdica crescia
Lembro dos bravos cacauicultores
Emanados de amor pela sua terra
Com fé doavam grandes quantias
A ilustre dona senhora
Benemérita, para São José!
Que bem merecia.
Hoje teus valentes filhos lamentam
O que do teu chão podre resvala,
Deixados sobre seus ombros
E choram...
Do historiador Arlindo Kfoury, aprendi
Que o governador da Bahia João Ferreira Pinho,
Em 28 de julho de 1910, através da Lei 807,
Fez-te a mais bela emancipada!
Faltava um nome que a qualificasse,
Vários surgiram para substituir tabocas,
Da sugestão do biscateiro João colete
Que gritou bota da lavadeira Maria Buna.
Salve ita una, nossa pedra preta.
Que enfeitada as margens do nosso Rio Cachoeira,
Que agoniza pedindo socorro,
Sem eco, morrendo aos poucos...
Oh Itabuna querida!
Nunca ninguém te amou como eu,
Do saudoso nome da lavadeira,
Tu te tornaste a mais bela, Itabuna!
Sione Maria Porto de Oliveira
Delegada de Policia, Membro da Academia de Letras de Itabuna