Em bom momento deste mês, em que Itabuna completará no dia 28 mais um ano de emancipação política, a poesia de Florisvaldo Mattos chega até nós para avivar o imaginário. Poeta de linguagem expressiva e conteúdo fraterno, de lastro clássico em seu discurso coeso, um dos mais importantes nas letras contemporâneas brasileiras, nascido em Uruçuca, Florisvaldo Mattos é também jornalista, professor aposentado da UFBA, membro da Academia de Letras da Bahia. Publicou livros de poesia e ensaio, sendo os dois últimos Poesia Reunida e Inéditos (2011) e Sonetos elementais (2012); tem no prelo Estuário dos dias e outros poemas, seu oitavo livro de poesia, do qual constam estes abaixo em homenagem a Itabuna, onde viveu, de 1945 a 1958, mas sempre presente em sua memória. (Cyro de Mattos)
OS HEROIS
(Infinita memória de
Tabocas)
A Cyro de Mattos e em
memória de saudosos amigos itabunenses: Agostinho, Carlito Barreto, Dedé, Edson
Cordier, Eraldo Cerqueira Gomes, Fernando Menezes Dantas, Dr. Gervásio Santos,
Hélio Nunes, Hélio Pólvora, Manoel Leal de Oliveira, Raleu Baracate, Ruy Cedar
Fontes, Telmo Padilha, Vidal, os irmãos Vitório e Zequinha Carmo.
I
Ao redor de um
jequitibá
A
mata vai gemendo, e a terra estremece...
E o matagal cortado em fúria desfalece.
Nataniel Ruben Ribeiro Gonçalves (1960)
Com as flores de mil
novecentos e onze,
Saúda-se uma construção
dos homens,
Primeiro trem-de-ferro em
Itabuna.
Estação branca e verde,
vigamentos
E colunas fundidos na
Inglaterra.
Logo se juntam ventos
mensageiros.
Plataforma apinhada de
murmúrios,
Espargem-se no ar
gestos que meu pai
Fazia, quando moço,
certamente,
E amargara na terra em
que buscava
Tolhido fruto ao sonho
retirante.
Lá, de gravata e
colarinho duro,
O Intendente rodeado de
comparsas
Bufa contentamento sob o
fraque
E manda um telegrama ao
Presidente
Alcovitando o feito
dos ingleses.
Aprumando o Latim das
Escrituras,
O Padre vem benzer o
prédio novo.
Ajusta os
paramentos de seu culto
E fala aos fiéis do bem
que é o Progresso,
Quando mansa a alma se
volta para os céus.
Discute-se o futuro dos
transportes,
O quanto servirão
a safra e ganhos.
O Juiz exalta a força do
vapor,
A do carvão e da
eletricidade.
Especula-se a sorte do
aeroplano,
Ou do que irão
chamar de zepelim,
Maior glória não
há por entre nuvens.
A fé
republicana abrasa as mentes.
Lábios estrugem
matinal vanglória
De batalhas vencidas, que
devolvem
Trajetos de remotas
aventuras,
Apegadas ao nome
do arraial.
No ardor de lúbricas
fruições, desfraldam
Firmamento
de audazes fundadores:
Firmes rostos e nomes que
até rimam
(Félix Severino do Amor
Divino,
Constantino, José
Firmino), e passos
De claro curso que
celebrizaram
Valentias e força
de trabalho.
Hálito de matas e aldeias
índias,
As sílabas percorrem de
Tabocas
Mágico som jorrado de uma
física
Tertúlia de músculos e
pulsos
Contra espesso e imperial
jequitibá,
Regência de machado em
fortes mãos,
Espelhadas em
pedregoso rio.
Embora calem pássaros
e ramos,
Abençoa-as um céu de
cores grandes
E corpos vibram de
tenacidade.
Teve também os seus Eneias essa
Laboriosa extensão de
apenas terra,
Que se atribui nascida
pátria da honra,
Isenta de alegrias
musicais,
Sem artes de alma
e ardências, sem violões,
Sem canções que não
as da natureza;
Somente árvore e sombra,
em dura faina,
E o cabedal de lutas
intestinas.
Uns ridentes, outros
compenetrados,
Entretém-se, conversam e
confabulam.
Há um novo sol no século
que se abre,
Vozes em
eco, unânimes, consagram
Passado que resume um
sonho plástico:
Charcos que foram e serão
depois
Ruas e praças, casas
e sobrados,
Matas vencendo,
derrubando cercas,
Auras que são tributo da
coragem.
A estação miram com olhos
do presente.
O trem-de-ferro logo
chegará.
“Para cá virão tropas e
tropeiros,
Os que passam agora e
passarão
Outros que sejam por
manhãs e tardes”.
Dali saem e vão jogar
bilhar,
Ou simplesmente ao coito
com donzelas,
Um conhaque talvez no
Elite Bar.
Ruge o inverno nas roças
de cacau,
Esplende a lama cevando
jatiuns.
II
Aurora com
Zé Nik
CONTRA NATURAM
Trouxeram putas para Elêusis
Meteram cadáveres no banquete
A mando da usura.
(Ezra Pound, Canto XLV)
José Nik a este
mundo não pertence.
Jamais seria alferes
dessas hostes;
Era mais personagem que
um ser físico.
Vinha de pai honrado
fazendeiro,
Gozou de lar e
escola, tinha letras,
Mas como herança de
satyricons,
Pela trama dos dias e das
noites,
Ganhou fama de mestre em
diabruras.
De onde vem como fauno
endinheirado,
Ilhéus lhe impôs coroa de
valente.
Dispensa o trem-de-ferro
e, em montaria,
Tabocas é o
destino, a terra nova
De áulicos e
de belas raparigas,
E vai se divertir no
Ponto Chic,
Áureo templo de bródios
camaradas.
Todos esperam que
chegue o endiabrado.
Acendendo relâmpagos nas
pedras,
Por uma dessas portas
chegará
O cavaleiro de rosto
amorenado.
Conhaque de alcatrão e
Vinho do Porto,
Gim e aguardente
espalham-se nas mesas.
Envolto em lumes,
ele enfim chegou,
Com seu chapéu de feltro
e aba larga,
Camisa em listras, largo
cinturão;
O revólver de cabo
madrepérola,
O punhal e o rebenque
encastoado.
Pisara em flores
sobre lama e lodo.
O punho forte segurando
as rédeas,
Apeia-se da mula e entra
no bar.
Pede conhaque com açucena
e, sério,
Bebe de um gole um quarto
de garrafa.
Já veio bambo e, após os
cumprimentos,
Senta-se. Logo se levanta
e brada:
“A canalha está em festa,
a raça espúria.
Quero que morra a nata
apodrecida,
Que nem mesmo vale
um tostão furado”.
Da audiência
refletida nos espelhos,
Tanto quanto as garrafas
de bebidas,
Abre-se o riso em luz de
acetileno,
Sobre as pedras
de silenciosa rua.
Entre um gole e outro, a
frase aguda,
Os olhos presos
no mármore da mesa,
Sabe-se que vem ébrio;
entanto, todos
Querem ouvir o oráculo
das matas.
Vivas estalam em
rolhas de champanhe,
Entre os cristais do
bar estrelejado.
Logo debulha os vícios da
República,
Que homizia
um rosário de maldades.
E, ante ávida plateia,
alinhavava:
Os deputados a bico de
pena,
A moral de rapina,
o chão de ratos,
Astúcias no silêncio
dos cartórios,
De notários
e fátuos advogados,
Venalidades e querências
surdas;
Os enfatuados donos do
dinheiro,
Nas casas compradoras de
cacau,
Com estrangeiros de rosto
avermelhado,
Tramam revoltas e terras
ocupam,
Expulsando posseiros a
chicote;
Os caxixes, o exército de
agiotas
(A usura participa do
cenário),
Balas e assassinatos de
tocaia.
Transpiram calma e
cálculo, astros são
De um conservadorismo
abençoado,
Cujas filhas fornicam nos
quintais.
Divertem-se liberando
ansiedades.
À noite nas sessões de
jogatina,
Entorpecidos, jogam bacará
E sete-e-meio
e pôquer apostado.
Privam também com suas
concubinas,
Em bordéis e mansões;
arreiam tropas
E transportam cacau pela
alvorada.
Tensas mulheres em
lençóis de seda
Libertam-se de sexo
reprimido,
Entre cortinas de um amor
furtivo,
Vezes muitas por
trás de um naipe de ouros.
Olhos vívidos miram
os cristais,
Um gole a mais, o cálice
no ar.
(Escrevente Manoel
Fogueira observa
Ovações
e estridências do espetáculo).
Todos
lembram o instante em que Zé Nik
Destratara um
Juiz em calma rua
E a noite em que, em
pleno Quartel Velho,
Tonto, se defrontou com
três maçons;
Mandou que abrisse o
bolso cada um,
Enfiando neles moedas de
um vintém.
Chovera. O céu de
estrelas semelhava
Um lago que espelhasse
pedrarias.
III
Noite com Zé Nik
Na cinquentenária avenida
cinquenta
anos te espero:
foste
herói impossível de um dia
que
não vingou nos anos vindouros.
(Telmo Padilha)
Horas havia,
à noite, em que o peito arfava,
O coração
media em derredor.
Destravando as amarras do
pensar,
Cogitava outro
passo, outro caminho.
Sonhava que estivesse num
jardim,
Entre flores e amigos,
num coreto,
A dizer-lhes que o mundo
é bem diverso
Do
que ruminam eles, do que sonham,
Como talvez lutar no
Contestado,
Soldado ser no Rio de
Janeiro,
Viver na terra
como um desastrado.
Rugas na testa
evocam movimentos,
Em paragens
longínquas, alistado,
Araucárias e verdes
pinheirais,
De árduo escudeiro, de
anjo protetor.
Tarde de sol venal e de
cansaço,
Na hora em que
búzios desertam o dia,
Entre nuvens de excesso e
perdição,
Olhos de azeite e
voz tonitruante,
O desastrado irrompe no
terreiro
De uma fazenda calma e
preguiçosa.
Aguardente de cana na mão
trêmula,
Com todos
grita, acusa, execra e xinga.
Depois arruma alforjes
nos arreios,
Emborca um gole a mais,
apruma o corpo
E deita, despedindo-se do
dia.
Entre restos de selva e
serrania,
O Rio Almada exaure-se
em canções,
Prenunciando auroras e
crepúsculos
De uma saga que nasce
nele próprio.
Zé Nik dorme o
sono da inocência.
É quando, alma
que veio do Nordeste,
Para sumir nos
eitos do cacau,
Colecionando injúrias, lavrando
ódios,
Arreando tropas, o
Amarelo espreita.
Com a mesma mão que
arreia as alimárias,
Doa
a um machado os sonhos de Zé Nik
E ao
Juiz disse que matou sem cúmplices,
Na tarde de incógnitas
infinitas.
Foi-se sem um rugido,
mesmo um sopro.
Fechados olhos como que
de ausência,
Do corpo pendem-lhe mãos
de escultura,
Da boca e queixo, um
terno e rubro líquido,
Sangue que peito cobre e
alaga o chão.
Arreado está, arreado
ficará.
“Ai! Que anjos o levem,
jamais Caronte”,
Imploram os varões do
Ponto Chic.
Astros e deuses logo o
levarão
Pelo moroso céu do que se
finda.
Adiante passam burros,
passam tropas,
Verdes matas prosseguem
expectantes,
Talvez nos ramos pássaros
gorjeiem.
Ansiosa desde sempre a
terra vibra,
Em pouco alegre chuva a
encharcará.
O outono vem com
nuvens de cetim.
(O rio Almada corre
silencioso,
No seu fado de eterna
testemunha).
Já pelo ar calmos ventos
anunciam:
Por milagre talvez ou
santas mãos,
Sobe na Bolsa o preço do
cacau.
Gritos se ouvem, nas
águas, nos caminhos,
Em mil novecentos e vinte
e sete.
Personagem de conto fin-de-siècle,
Aqui se finda a história
de Zé Nik,
Em nada parecido com um
ser físico.
IV
Alvorada renascida
Ah! Como eu sou feliz e me sinto orgulhoso
De um dia ter nascido em teu seio faustoso,
Sob o esplendor de um céu de beleza tão rara!
José Bastos (1905-1937)
A luz que escorre
sobre um rio morto
Ainda derrama cores e nos
alerta
Que o passado vivido
que passou
É passado lembrado que
não passa.
(Ó sonoro Guillén,
disseste-o bem,
Ecoando suados rastros de
conquistas,
Com voz de bardo
hispano-americano:
“O passado passado não
passou”).*
O tempo foge, gasta e
desconcerta.
Os caminhos da vida têm
cancelas,
Que se abrem,
quando emergem na memória
Com os ecos de
machados retumbantes,
Força e fervor de braços
sergipanos.
Não só de sóis a letra é
devedora,
Das estrelas menores é
também.
Sumiu Tabocas, o arraial
primeiro,
Matas de cedros e
maçarandubas.
(Só não sumiu o amor pelo
cacau).
As noites moldam novas
alvoradas,
Enquanto nuvens pelos
céus bendizem
Terras heroicas
sobre as quais ainda hoje
O vento sopra despejando
flores,
Saudando todas as
criações e luzes,
Os caminhos acesos de
Tabocas,
Que ainda fosforescem e
cintilam,
Em chão de orvalho
e lidas que retornam
A esperanças vividas
e sentidas.
Dessas auras, contrito,
me despeço.
Itabuna venera seus
Eneias,
Que dialogavam com
jequitibás.
Tabocas nunca esquecerá
Zé Nik,
Que foi seu outro lado
incandescente.
(SSA/BA, 1982-01.05.2016)
*Oh aurora dos tempos,
incendida!
Oh mar de sangue, mar que desbordou!
O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.
Oh mar de sangue, mar que desbordou!
O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.
(Nicolás Guillén, in
“Elegia a Jacques Roumain, tradução de Manuel Bandeira).