Maria
de Lourdes Netto Simões
O título A
Viagem de Orixalá: estrada de Sagitário,
caminhos de Orunmilá instiga à leitura; especialmente instiga a alguém como
eu, agnóstica, mas respeitadora de crenças e caminhos (entendendo-os como
linguagens). E, pelo que o título suscita, a
pergunta se impõe: será um texto de
ficção? de resultados de pesquisa? de ensinamentos?. Tal dúvida se
fortalece com a epígrafe de abertura:
”Tudo isso [...] será a vida imitando a arte”.
De
saída, debruço-me sobre o belo projeto gráfico e a estrutura do livro.
Ilustrado, com inventivas gráficas (inclusive páginas manuscritas) e inúmeros paratextos: dedicatória,
epígrafes, agradecimento, sumário, ilustrações, orelhas, chamadas de advertência ao leitor, notas de
rodapé, glossário.
O
Sumário refere, além de um texto introdutório – Ficção e Oralidade- , quatro
partes ficcionais; mais um texto
denominado “Cerração” e um Glossário.
Mas, antes do sumário, um paratexto põe a questão da autoria, onde Ruy
Póvoas afirma que o livro ficcional será escrito por um personagem, criado por
ele, de nome Leonam. Em verdade, nesse esclarecimento de autoria, RP afirma: ”eu
fico com o papel daquele que
providenciou condições para ele atuar” ( p. 15). Insinua ao leitor as regras do
jogo da escrita e o tema sobreposto em várias intenções: “Ao focalizar a viagem
de Orixalá, na verdade, é ele [Leonam] quem viaja em busca de si mesmo” (p. 13).
Será
somente isso? – a dúvida se impõe. Mas notemos: ele escolheu
um agnóstico para Narrador=Personagem-escritor.
Com que autoridade esse N=Pe falará de astrologia ou de candomblé? Ao afirmar que terá de admitir que o seu N=Pe
crie, por sua vez, “criaturas ficcionadas”,
estará estabelecendo um álibi relacionado à verossimilhança ficcional?
Como diz, “caberia ao escritor apenas oferecer condições para revestir os personagens com roupagens especiais que lhes
dão vida , vigor e vitalidade” (p. 15). E fica a pergunta: quais roupagens?
Em
verdade, parece ser o autor, Ruy Póvoas, o maestro que se vale da ficção para o seu
propósito de escrita e suplementa essa narração com uma estrutura que se encontra nos limites do texto principal da
obra, os paratextos. Tudo isso, numa primeira impressão, provoca a
ideia de deslimite de gênero, integração de saberes, fronteiras derrubadas
entre a vida e a arte.
Para
verificação de tal hipótese, tomo o
conceito de paratextos de Gerárd Genette, que os considera como editoriais e autorais. Para estas
considerações, interessa o paratexto autoral (in: Seuils. éditions du Seuil,
coll. "Poétique", 1987, p. 8), visando
evidenciar a importância e contribuição do recurso paratextual para o nível de
significação da obra. Genette refere a paratextualidade como uma forma de transcendência textual, “aquilo por meio de
que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira
mais geral ao público”
(in: Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê editorial, 2009, p.9). Tal conceito
compreende o texto em íntima ligação com uma estrutura que o envolve e
contribui para que tome forma e produza sentidos.
Senão,
vejamos.
1.
A
gênese do texto ficcional
Ficção
e Oralidade são os dois recursos básicos da inventiva de A Viagem de Orixalá. Já
sinalizado no título do capítulo, complementa-se metaforicamente: viagem,
estrada, caminhos. Aí, como introdução geral da ficção, os processos
ficcionais são discutidos pelo N=Pe: a
criação de mais 15 personagens, além dele mesmo; a escolha da Astrologia, dos Odu de Ifá e dos saberes do terreiro do
candomblé, como forma de lidar com o conhecimento.
O
insight para a escrita do livro fica,
para o leitor, entre a realidade (o livro como um todo na sua inventiva) e a
ficção (o narrado pelo personagem Leonam). Agora, é o N=Pe quem fala sobre os
quatro acontecimentos que provocaram a criação ficcional: a comemoração
dos 70 anos, um sonho com a constelação
de Sagitário, a visita à festa do Pilão de Orixalá e a eleição de um mito
africano (p. 23). Esses são os
disparadores dos insights para os
personagens.
Como
RP havia anunciado em Uma questão de Autoria, o escritor se “descolaria” do personagem recém-criado. Tanto
é que, já agora, é Leonam quem afirma: “É
a ficção criando a realidade” (p.24). Na
tentativa de explicação desse processo criador, no entanto, esse N=Pe
encontra-se ainda imiscuído com RP em muitos momentos do seu “outrar”, até mesmo na reflexão (p. 25) sobre outros escritores e processos de dar
vida a personagens. Sobre o ato da
escrita, Leonam afirma que a viagem “não
começa por um projeto, mas por arrebatamento” (p26). Mas, gradativamente, o
leitor não terá dificuldade em perceber, por trás, a orientação autoral de Ruy Póvoas, ao identificar reflexões que ultrapassam o perfil do
personagem Leonam. Assim é que refere a “estrada”, os “caminhos”. Conforme afirma: “ a estrada é
a intuição que se anima na oralidade [...] e passa também pela memória “ (p.27); e acrescenta: “a viagem é compulsiva, mas os
caminhos se constituem escolhas” (p.26)
A
dúvida sobre a legitimidade de o N=Pe fazer essas reflexões sobre o processo
criador instala-se no próprio texto: “se
ele não passa de um ser de ficção, como ousa descrever o processo criador?”
(p.27) e provoca a inquietação: essa é voz do leitor? voz de RP, buscando
salvaguardar a verossimilhança? Pela
boca de Leonam, a ambiguidade dá
resposta aos céticos: “eu também escrevo” (p. 27).
Leonam
anuncia que “o download está começando” (p.27) e indica um ponto de referência
e partida: A festa do Pilão, num terreiro de candomblé. Diz da estratégia de recorrer ao mito nagô
como “espinha dorsal” dos textos dos 16
participantes (mas não fala de “um caminho diferente”, referido no sumário, e
que se encontra à p. 327). Sustentando a
tese de que “escreve quem realmente tem o quê dizer” (31), agradece aos seus
inspiradores. Assinando como organizador do livro, Leonam Navarro deixa claro ao leitor que acaba de escrever a
introdução do texto ficcional. No
entanto, a ambiguidade autoral não se esvai; subsistem por trás do nível do relato
ficcional, algumas “pegadas” do escritor
RP: “não sei se ainda terei oportunidade de aparecer por aqui [...] que também seja
uma despedida” (p.32). Despedida de
quem?? Leonam certamente aparecerá, pois
será o personagem principal do texto ficcional que se estrutura em quatro
partes.
2.
A
viagem: o pensar
Download
da memória? Do projeto articulado? A epígrafe que abre a Parte I anuncia a sua
palavra-chave: o pensar. Eis que tem início A viagem de Orixalá, estrada de Sagitário, caminhos de Orunmilá.
Astrologia e ensinamentos das crenças do candomblé são a base do pensar. Mas por que escrever?: “Eis aqui uma sequela
da viagem na existência: necessidade de explicação” (p.36).
“Chegar
aos 70 foi para mim a viagem das viagens” (p. 40), tal é declarado pelo personagem-escritor Leonam. Indiretamente,
também por Ruy Póvoas quando revela os
seus 70 anos, ao informar o ano do seu nascimento (1943), através do paratexto autoral, segunda ‘orelha’ do livro. A virada para os 70 parece ter sido motivação de mudança, o “gatilho” para a
escrita das memórias.
A
visão do Sagitário criou o sonho,
ordenou a narrativa a partir das 4 flechas
e recomendou: “Não esqueça dos
Odu de Ifá...” (p.49). Depois, A Luz de
Orunmilá explica os princípios do
candomblé; traz o mito, a fonte que faz a espinha dorsal da narrativa; o
desencadeador do processo do autoconhecimento,
dos ensinamentos.
Vale
ressalvar que a estratégia autoral de o N=Pe ser agnóstico possibilita ao
leitor, leigo sobre o mundo do candomblé,
assenhorear-se de conhecimentos básicos para a compreensão do significado mais profundo da narrativa. Estudando Leonam, aprende também o leitor:
“Agora eu tinha as falas [...] além das leituras, pesquisas e estudos sobre
Astrologia, Sagitário e sobre os Odu de Ifá” (p.76). Ou seja, oralidade e pesquisa; o corpus
teórico do trabalho é dessa forma definido.
Na
formulação do pensar dessa Parte I, o
recurso paratextual das notas de rodapé alia esclarecimentos
científicos à ficção. Referenciam,
iluminam e esclarecem o ensinamento; e,
ficcionalmente, contribuem para a verossimilhança do personagem. Ainda, fortalecem e dão legitimidade ao pensar,
como dão sustentação ao projeto.
3.
A
escolha de estradas.
Na
vida, a escolha da estrada a percorrer é fundamental para o caminhar. Assim também na ficção; a estrada se define
através de opções e possibilidades do andar, os caminhos. E o mesmo podemos dizer em relação a um projeto de pesquisa; a
escolha da “estrada” a percorrer implica na metodologia a ser desenvolvida.
A
epígrafe que abre a Parte II adverte a possibilidade de outros olhares sobre a
sociedade, além daqueles oferecidos pelas Ciências Sociais (p77). A ficção de
Leonam, por ordem do Sagitário, elege Os
Odus de Ifá como orientação para o caminho a percorrer. A linguagem a ser usada
na busca de si mesmo, é também escolha. Como afirma Leonam: “Apenas preferi não
me sentar no divã. [...] Escrever, então, para mim, seria caminhar em busca de
mim mesmo” (p.79).
É
o N=Pe quem diz: “Esse prólogo parece
que nunca mais vai terminar. [..] Não é comum escritores fazerem making-of e, além do mais, fazê-lo
integrante da obra escrita” (p.79). Mas a verdade é que o making-of já fora iniciado por
Ruy Póvoas, em “uma questão de autoria” (p. 13). Agora, a paratextualidade autoral é admitida na afirmação do making-of e ratifica parte da metodologia definida para a escrita
do livro.
As
reflexões sobre estrada (sentido literal e figurado) evidenciam a necessidade do conhecimento de
alicerce, “o chão teórico-metodológico que me possibilitará tal empreendimento”
(p.82). Como reconhece Leonam: “Daí,
minha tenacidade de entender ao máximo possível sobre assuntos da
Astrologia e dos Odu de Ifá” (p.80). A decisão de estrada é também a do suporte
que sustentará a caminhada: “Tomar os Signos do Zodíaco e os dezesseis Odu-meji
como possibilidade de acesso ao inconsciente” (p. 81). Os paratextos – especialmente as
notas de rodapé – dão a sustentação teórico-metodológica que Leonam busca e
precisa. Também nesse caso, a presença de RP subjaz, através da experiência do babalorixá (oralidade) e do
pesquisador (as informações científicas trazidas pelas notas). O texto introdutório da Parte II assenta a
decisão do N=Pe: “As quatro flechas que Sagitário me deu vão se transformar em
quatro partes do livro” (p.92).
Essa
conclusão de Leonam não estará extemporânea, considerando que ele já está
escrevendo a Parte II? Ou toda a reflexão teórico-metodológica não seria do
texto maior, assinado por Ruy Póvoas? Fica
a dúvida para o leitor. E o próprio
Leonam responde: “Dormientibus non
siccurrit jus” (p. 92, embora a tradução, no rodapé, seja um
paratexto autoral de RP). A certeza
de que “a lei não socorre aos que dormem” leva-o [-os] à promessa da sua vigilância total sobre o processo da escrita.
Ficcionalmente,
do encontro no Terreiro ocorre o conhecimento do mito, pelos 16
personagens-escritores. A estratégia de os Pe não serem gente do candomblé
justifica a necessidade de esclarecimento do ritual (para a ficção; para a
pesquisa). Mais uma vez, ganham os leitores... O encontro no terreiro é a
descrição-narrativa do ritual, com o
didatismo de uma aula. (p.100). O
ensinamento pela oralidade é, no enunciado, apresentado em letra cursiva. Dessa
forma, é contado o mito da Viagem de
Orixalá, cuja lição será retomada por cada personagem-narrador, como fonte para
as respectivas autorreflexões. E o mito é
concluído com uma sentença: “A glória cabe apenas a quem se dispõe enfrentar a
si mesmo” (p.106).
Dessa
“afirmação”, é selado o Pacto entre os amigos: “a história vai ser a
espinha dorsal do livro” (p.121). Fragmentos do mito serão epígrafes desencadeadoras de cada caminho.
Assim, cada N=Pe escreverá a partir das respectivas autorreflexões provocadas
pelo mito, em “enfrentamento de si
mesmo” (p.121). Nesse ponto, o projeto é
ficcional e a sua metodologia
é traçada pelos personagens em
reuniões sucessivas. Dentre as conclusões, uma coisa fica assentada: “a fé é
independente das peias da religião” (p.121).
Essa afirmação ficcional tem repercussão de ensinamento e alcança a
perspectiva de multiculturalidade, de
respeito às diferenças, subliminarmente proposta por RP ao conceder liberdade ao narrador da ficção.
Nesse
mister do ensinar, os paratextos autorais ganham cada vez mais ressalto, complementando
e suplementando a ficção, em função do objetivo comum (da pesquisa e da ficção)
quanto às “ferramentas” para o processo do autoconhecimento. Pari
passu, a metodologia para a elaboração da ficção se define, fluindo das
conversas entre os do grupo. Simultaneamente, tem visibilidade a metodologia da
pesquisa/ do processo ficcional. A estratégia dos paratextos dão os subsídios
referencias de conhecimento ao grupo de personagens e ao leitor. E fortalecem a
verossimilhança ficcional. Acentuam o
deslimite de gênero que o livro suscita.
4.
O
cerne temático - A Caminhada, em execução do projeto ficcional e da autorreflexão.
A epígrafe de W Borges que abre a Parte III
afirma que “No rio da vida, as águas do tempo curam tudo, pois diluem no eterno
as coisas passageiras” (p.137). Tal ideia pode se relacionar à ficção e à vida
que imita a ficção, como sinaliza a já
referida epígrafe que abre o livro: “qualquer fato semelhante, acontecido, será a vida imitando a arte.”
(p.9).
Na
proposta ficcional de Leonam são
eleitas três orientações: “o orixá, o
odu e signo” (p. 201). Assim, os focos evidenciam a diversidade: filosófico,
antropológico, psicanalítico,
religioso, social, identitário...,... E,
pensando no inquietante deslimite de gênero,
a ideia é a de que RP
insubordinou-se. Ele, o pesquisador, valeu-se da ficção criando personagens
que legitimassem o seu falar. Transgressões poéticas? Cientificismo tangencial?? Álibis?
Ficcionalmente,
a caminhada é de cada Personagem-escritor que, trabalhando com um fragmento do mito, visa a
autorreflexão e o autoconhecimento. Além disso, cada um traça a sua metodologia de abordagem. Os focos são aqueles
que dizem respeito às respectivas vidas. Assim, os ensinamentos vão sendo apresentados, absorvidos pelo
leitor, homeopaticamente. Inclusive com
o inesperado Caminho Diferente, que faz com que sejam 17 caminhos e não 16. Opira! Com esse, haverá a intensão
autoral de deixar ao leitor a reflexão sobre a sua possibilidade de mudar o próprio
destino? E a epígrafe desse Caminho 17, induz a essa conclusão: ”A glória cabe apenas a quem se
dispõe enfrentar a si mesmo” (p.327, negritado pelo autor).
Suplementarmente,
os paratextos referenciais (notas de rodapé) tornam-se mais intensos, dando
substância às reflexões de cada personagem, situados em áreas de conhecimento
diversas. Nesse proceder, por vezes,
ocorre a impressão de que o paratexto autoral das referências científicas, que
suplementa a reflexão ou narrativa, se
sobrepõe à ficção (p.141). Se, por um lado, as referências complementam as
lacunas de conhecimento dos personagens, por outro, proporcionam ao leitor, também,
uma informação suplementar. O leque
de focos
abrange as humanidades em perspectivas existenciais que sinalizam as
possibilidades de multiplicidade de caminhos para o autoconhecimento.
Dessa
forma, o texto enunciativo se resolve em
três níveis de escritura: o do planejamento do autor RP, do planejamento do
Narrador Leonam, do planejamento de cada personagem-narrador, em função do
fragmento do mito a cada um destinado
(p.221). Como conclui o próprio personagem, “o mito de A Viagem é de profunda
generosidade no que diz respeito ao
ensinamento de princípios éticos e morais” (p.226). Do mito, ao rito, ao
ritual, prossegue a viagem, transportado pela linguagem do candomblé.
Se
os Caminhos são vários, não cabe ao leitor, no entanto, juízo de valor. A
intencionalidade autoral se justifica pela convicção de que “a ciência, a
religião, as artes possibilitam [...] opções as mais variadas” (p.207). A
diversidade é respeitada e aí também reside um dos ensinamentos: cada um tem o
seu caminho; é preciso aprender a trilhá-lo
conforme o seu perfil; pois “nenhum
caminho [é] melhor do que o outro” (p.207).
Assim,
“costurando” os vários focos, a cada Parte, é traçada progressivamente a metodologia de cada etapa da “viagem”. Na
instância do enunciado, o leitor
recebe orientações sobre maneiras de
autoconhecimento, inclusive sobre o jogo
de búzios, que explica a “trama de Sombra
e Luz, através da qual o humano é construído e se constrói” (p.253). Os
focos também revelam o cotidiano dos
terreiros de candomblé, sua organização;
a maneira da educação; a oralidade (p.279), onde “o mais velho enfatiza para o
mais novo um conhecimento que ele precisa aprender” (p.282); ou,
no observar e escutar atitudes e
rituais, na linguagem do silêncio (a expressão é de Marialda Silveira, 2004). Por trás, na enunciação, o escritor RP vai deixando registrada uma memória de
experiência e ensinamentos. A ambiguidade entre o sujeito do enunciado e o da enunciação toma o leitor. Sob a fala de
Leonam, subjaz a de RP: “Quem me leu até aqui, na certa já deve ter tirado
suas conclusões sobre minha parte nesse latifúndio de Iká.” (p.288)
Como
foi dito, cada caminho uma faceta; cada faceta um conhecimento sobre o
candomblé - desde a explicação de ritos e rituais, à organização do terreiro e
formas e concepções de riqueza. Este livro é orientação para o autoconhecimento,
sim; além disso, é também revelação, compartilhamento de uma
cultura, de um estar no mundo e do conviver
com os orixás.
5.
A
chegada – o sonho realizado
Por
que sonho realizado? Será pela jornada
da vida vivida até aos 70 anos, tanto pelo autor, como pelo personagem? : “Já
no limite das minhas forças, pensei que minha viagem chegara ao fim.” (p. 349).
Na textualidade, a afirmação de que a
chegada é o sonho realizado se faz também pela observação do projeto
relacionado. A chegada é do narrador Leonam, personagem organizador dos relatos
ficcionais; mas também é do autor Ruy
Póvoas que, com esse livro, ultrapassa a oralidade. Valendo-se dela, dá-lhe
forma escrita para deixar ensinamento a leitores de dentro e fora da “porteira”
(a expressão é de Póvoas,
2007, quando se refere ao limite
cultural do terreiro do candomblé).
Sujeito
ficcional (enunciado) e sujeito pesquisador (enunciação) se unem para a chegada:
“É percorrendo a estrada do sonho, no
entanto, que se pode entender a
diferença entre ele e a dureza da realidade [...] Quanta realidade necessitando do sonho! Muitos são os
caminhos, eterno convite para a compreensão mais larga” (p. 349). A estratégia de recorrer à ficcionalização para
dar o seu recado oportunizou a RP,
pesquisador e babalorixá, “expandir as
fronteiras de estudos consagrados, sem conflitos com o quê
está estabelecido pela tradição científica” (p.351), finalizando com o convite de viagem para o
leitor. Mas antes, para atender aos de dentro e fora da porteira, indica o Glossário, paratexto
autoral que fecha o livro.
E
o sonho (e tb o texto ficcional, que é o sonho) cerra o livro. A Cerração (p.
355) é do sonho e é da vida? Ao leitor intrigado, fica a pista: “no início já
estão as marcas do fim” (p. 356). E, retomando: ”Tudo isso [...] será a vida
imitando a arte” (p. 9). A vida não é mesmo uma viagem que um dia se apaga? “assim,
assi
ass as a...” (p. 356).
6.
Conclusão:
Paratextos e significação – os níveis de
leitura
De
início, ao explicar sobre a questão de autoria, Ruy Póvoas declara a sua intenção de criação do texto
ficcional e admite que a narrativa do personagem- narrador é “interrompida em
várias passagens por fragmentações” (p.
13). Acrescenta ainda que “tais
fraturas, no entanto, poderão levar o leitor muito mais longe” (p.13).
Da
articulação entre textos e paratextos, resulta a maior singularidade da inventiva
transgressora: o texto ficcional se
apresenta reforçado por certo número de produções, sejam elas verbais ou
não-verbais (traduzidas da oralidade da linguagem) e, que, de certa forma, o prolonga e suplementa; especialmente é de ressaltar o mito (espinha dorsal da ficção) e
as notas de rodapé (que acrescentam a fundamentação teórica ao texto). O
livro, por tais recursos, se acrescenta, buscando garantir a sua
comunicabilidade, sua recepção e seu consumo.
É
confirmada a hipótese de que os elementos paratextuais autorais acrescentam o
texto que o envolvem. Isso porque não somente ocorre uma complementariedade
através dos elementos pretextais (dedicatória, epígrafes gerais, capa,
ilustrações) e os pós-textuais (glossário) que o ampliam; mas também, como
referido, pelo mito-epígrafes e pelas notas de rodapé, que integram o texto
ficcional e, ultrapassando-o, suplementam-no, e oportunizam outro nível de
leitura. A relação interdiscursiva, que ocorre, prolonga a obra. Ainda a conclusão de que as fronteiras do
texto se situam na instância do enunciado e as intervenções paratextuais são de
natureza enunciativa favorece a afirmação de que, entre a escrita e o livro
como presentificação, a dimensão comunicacional da textualidade se consubstancia.
Realmente, em A Viagem de Orixalá,
por sua particular suplementariedade, é possível afirmar que o paratexto tem
aquela estatura de lugar privilegiado de uma pragmática textual e de uma
estratégia, que resultam em ação sobre os leitores. Tais procedimentos, como antes
afirmado, longe de obscurecerem a compreensão geral do trabalho, iluminam
questões específicas da interpretação, aprofundam as digressões do leitor, funcionam como mediadores entre o leitor e o texto;
levam o leitor “muito mais longe” (idem).
Em
aprofundamento de níveis interpretativos, os limiares do texto exigem, assim, a
convergência em torno de uma análise textual atenta às mediações entre o mundo
social e o ato de leitura. Sobretudo o conceito de recepção deve ser
requalificado, abarcando não apenas a distância do horizonte social e das
leituras partilhadas por comunidades interpretativas; mas, também, o nível mais concreto e imediato
desse conjunto de textos “menores” que,
no entanto, constitui a dimensão material da própria obra.
Linguagens
diversas e lugares de conhecimento
diversos resultam no projeto/ficção bem articulado, onde a inventiva passa
por fazer o sujeito do enunciado e o
sujeito da enunciação andarem de mãos
dadas. O interesse deste livro passa, portanto, pelo olhar a sua concepção e
montagem. Projeto de criação e pesquisa,
cuidadosamente pensado e justificado,
“casando” as linguagens científica e ficcional. Ciência e
Arte! Pesquisa e Ficção. Estratégia singular de salvaguardar memória, oferecer
ferramentas para o autoconhecimento,
registrar uma caminhada, marcando
o especial lugar da cultura do candomblé. Tudo isso, expondo a ideia de
diversidade, sintetiza o propósito de preservar e compartilhar ensinamentos
de heranças culturais africanas.
Julho
de 2016