Quando estudante
universitário, uma das coisas que gostava era de ir à Rua Chile. Quase todos os
dias, visitava a Livraria Civilização Brasileira como uma necessidade que o
tempo impunha, semelhante àquela quando se tem sede ou fome. Na Livraria
Civilização percorria as prateleiras, procurando achar algumas dessas raridades
literárias, que há algum tempo estivessem com a edição esgotada. Perguntava ao
vendedor Toninho se havia chegado algum livro novo de literatura. Examinava na
vitrina as obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Lima Barreto. Os
livros de Dostoiewski, Hemingway, Faulkner, Sartre e Camus. Sagarana, de João Guimarães Rosa, e Perto do Coração Selvagem, de Clarice
Lispector, lá estavam para causar impacto e opiniões acaloradas entre os
companheiros de geração.
Era na Livraria Civilização que me encontrava
com os companheiros de geração, à qual alguns deles pertenciam por afinidades
eletivas, enquanto outros em razão da idade. Ildásio Tavares, Alberto Silva,
Ricardo Cruz, Marcos Santarrita, Orlando Sena, Olney São Paulo, João Ubaldo
Ribeiro, Adelmo Oliveira, Davi Sales, João de Góes Berbert, Carlos Falk e
Carlos Nelson Coutinho. Encontrava, quase todos os dias, com três ou quatro
desses companheiros de militância cultural, que se iniciava como botão ou rosa
entreaberta no mundo da ideia.
Conversava com Calasans Neto, Jurema Pena e
Florisvaldo Mattos. Via o professor Machado Neto com os olhos atentos por trás
dos óculos de lentes fortes perscrutando algum exemplar, provavelmente de
sociologia ou filosofia. Cruzava com Hélio Rocha, Nélson de Araújo, Vivaldo
Costa Lima, João Carlos Teixeira Gomes, Sonia Coutinho. Era comum naquele tempo
Glauber Rocha aparecer com Paulo Gil Soares e Fernando da Rocha Peres, ou ainda
com Carlos Anísio Melhor e Oto Bastos. Inteligência privilegiada, Glauber Rocha
formava com os seus companheiros de geração um grupo de intelectuais
irrequietos, que na época agitavam os meios culturais de Salvador.
Na Rua Chile, às sextas-feiras,
pelo fim da tarde, gostava de ficar olhando nas vitrinas as camisas da última
moda, a serem usadas pelos jovens no verão. Depois, naquele momento antecedido
de ânsia, lá ficava no passeio de alguma loja, recostado à parede, vendo as
garotas que desfilavam com uma ginga provocante. Mulatas, morenas, louras.
Nelas aquele cheiro bom de maresia e ventos por toda a extensão da pele. Minhas
preferidas eram as mulatas. De olhos gateados, seios despontantes, curvas
sensuais. Não podia ver uma dessas mulatas com os quadris rebolando, com todo
aquele sabor na pele de fruta gostosa, como já me referi. O romancista João
Ubaldo Ribeiro está aí mesmo e não me
deixa mentir.
Refaço agora os rastros
daquele calendário solto. A camisa esporte, os cabelos cheios na tarde de
marinheiro. O amor pulsando nas veias, a emoção dando água na boca, quantas
aventuras memoráveis. O moço veio do interior para se formar em advocacia, mas
aos poucos foi descobrindo sua paixão pela literatura. Na vitrina, livros
anunciavam viagens, novas e tão velhas. No calor do verão, ventos impulsivos
queriam de repente mudar o mundo. Pela tarde, quase toda a cidade
movimentava-se naquela rua quase estreita e nem tão comprida. Ali, a cidade
como fêmea e fruta carnuda que se oferta num gesto de aventura e risco. Tudo a
soar fervoroso no passo esplêndido da vida com seus metais ao sol,
incandescendo a tarde em ritual que se renova a cada instante sorvido. Posso
dizer, plagiando Carlos Drummond de Andrade, que o meu aprendizado de que amar
se aprende amando teve início na Rua Chile, começo dos anos 60. Dentro de mim o amor permanece até hoje com
os seus vestígios de maresia. A pele bronzeada com o azul das marés e hálito
quente dos ventos destacava a rosa no
calor do tempo.
Hoje de regresso, vejo a rua
desbotada, aceno para velhos companheiros. Triste canção assovio. Despeço-me
nos passos monótonos de alguém que segue em silêncio. No amarelo das lojas, na
fenda dos passeios, na calma desse fim de tarde, vejo como é duro saber que
tudo aquilo, no apogeu solar dos frutos maduros, de repente se esquiva e, como
uma onda na vazante, nunca mais se repete.
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